Resumo
Este trabalho é a publicação da tese de doutoramento defendida pela A. na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em 1980. O título dá bem a entender o interesse que encerra para os estudos sobre vestuário pois o enfoque recai em área pouco contemplada em textos para um público não especializado, a produção de roupas de moda, o que conhecemos hoje como confecção industrial. A pesquisa consiste em duas partes: numa introdução sobre o desenvolvimento do trabalho industrial a domicílio desde a Revolução Industrial, especialmente na indústria de confecção; e na análise de uma série de 53 entrevistas realizadas com operárias de fábrica, costureiras internas (empregadas nas oficinas de confecção) e costureiras externas (mulheres contratadas pelas oficinas mas que trabalham no próprio domicílio). Trata-se de um estudo em sociologia do trabalho no qual analisa-se a estrutura do emprego feminino e as condições de trabalho num setor específico da indústria de confecção brasileira: as oficinas de confecção de roupa feminina de alta qualidade (vendidas apenas em butiques), na cidade do Rio de Janeiro.
Seu valor para o debate sobre as formas de organização da economia contemporânea, vale dizer para a compreensão dos mecanismos de reprodução do capital, é amplamente reconhecido no prefácio de Heleieth Saffioti. Neste aspecto o ponto principal é a persistência daquelas atividades econômicas que escapam às regulamentações legais, comumente denominadas setor "informal" ou "invisível" da economia e nelas do trabalho a domicílio. Este último é o objeto de interesse da A.. Seguindo os estudos de E. Thompson, demonstra como na primeira fase da Revolução Industrial (1780-1840) constitui a forma predominante; apenas na indústria têxtil o sistema fabril implantou-se fundamentalmente (sobretudo na produção de algodão e lã). A constituição do mercado de trabalho capitalista não teria se dado, então, pela passagem do artesão independente para o operário de fábrica, mas predominantemente pela subordinação do trabalhador industrial a domicílio aos interesses do capital. Os efetivos globais do trabalho a domicílio subordinado à produção industrial diminuíram desde a segunda metade do século XIX mas este não desapareceu. As estatísticas que a A. pode trabalhar ao longo do século XX, tanto para os países altamente industrializados, quanto para os países da América Latina, sobretudo para o Brasil, demonstram a importância dos setores informais e neles, do trabalho a domicílio para a produção econômica.
A persistência desta forma de organização do trabalho deve-se à sua utilização como forma de diminuir os custos com o fator trabalho. Observa-se que ela se enfraquece em determinados períodos quando é alcançada por regulamentações legais, principalmente aplicação de direitos trabalhistas que encarecem sua remuneração (são exemplos as Trade Boards da Inglaterra, no início do século, e a legislação italiana de 1973). É esta característica que faz com que a partir dos anos 60 muitos pesquisadores latino-americanos, incluindo os brasileiros, a analisassem como forma estrutural da organização econômica capitalista nos marcos de uma discussão sobre o desenvolvimento econômico desigual e combinado, à qual a A. vem trazer sua contribuição.
Ocorre que se o interesse econômico pode explicar satisfatoriamente este aspecto da organização estrutural da produção capitalista, a organização da produção e do trabalho na indústria de confecção só são compreensíveis quando analisamos a articulação do objetivo econômico de maximização dos lucros da empresa capitalista com valores culturais. São fatores culturais da organização econômica que transparecem nos argumentos desenvolvidos pela A., aos quais ela, por vezes, atribui peso na discussão, aspecto também observado pela prefaciadora que faz referência ao que denomina "diferenciação extra-econômica na massa de trabalhadores", dando relevância aos aspectos ideológicos e políticos na dominação econômica.
A A. apresenta-nos quatro características específicas da indústria de confecção: baixo impacto de inovações técnicas; heterogeneidade da estrutura industrial; alta divisibilidade do processo de produção; fundamental importância da atividade de comercialização, sobretudo de marketing. Estas características mais o processo de feminização do trabalho a domicílio, discutido no texto, só podem ser compreendidos na análise dos valores culturais envolvidos na produção industrial do vestuário, a saber, aqueles oriundos da divisão sexual do trabalho que depreciam o trabalho feminino e aqueles que aprofundam as diferenciações entre as identidades de homem e mulher.
A utilização do trabalho de mulheres, crianças e outros grupos como imigrantes constituem desde o século XIX um fator de barateamento de mão-de-obra pois sua remuneração sempre foi menor do que aquela estabelecida para homens adultos. Após a Primeira Guerra a A. mostra-nos como o trabalho feminino transformou-se no principal fator de economia nos custos do trabalho, justamente porque o trabalho a domicílio foi mantido principalmente nas indústrias que tradicionalmente empregavam mão-de-obra feminina, como aquelas de confecção de vestuário feminino e de chapéus (não é acaso que os vários estudos contemporâneos sobre estrutura do trabalho feminino utilizados pela A. são também estudos sobre a indústria de confecção). Sua pesquisa no mercado de trabalho brasileiro demonstra os mesmos objetivos para o emprego de mão-de-obra feminina, mostrando seja a subcontratação de costureiras externas fora do regime de CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), seja a fraca posição das costureiras na negociação dos valores a serem pagos pelos serviços, ou ainda, a aplicação de uma política de rotatividade de mão-de-obra que pode ser inferida a partir da constatação de que a mobilidade profissional das costureiras é predominantemente horizontal (mudança de emprego) e não vertical (ascensão a postos melhor remunerados numa mesma empresa).
Esta função do emprego feminino nos custos do fator trabalho explica-se pela persistência da divisão sexual do trabalho nas sociedades industriais, que deprecia a remuneração do trabalho da mulher ao considerá-lo "complemento" do trabalho masculino. Se esta situação é apontada em trabalhos sobre a Revolução Industrial, a A. pode observá-la no estudo de caso que desenvolveu. Compreender as diferentes formas de inserção das costureiras no mercado de trabalho da indústria de confecção implica considerar o papel da mulher na família e, de fato, a A. pode demonstrar como "os vínculos com as responsabilidades domésticas em distintas etapas do ciclo familiar vão influenciar o tipo de participação no mercado de trabalho".
As tarefas domésticas sendo responsabilidade das mulheres tornam o trabalho assalariado uma opção em momentos de prementes necessidades financeiras. Assim, o trabalho como costureira interna numa fábrica, implicando trabalho fora do lar, aparece como complemento da renda familiar nos períodos nos quais o marido não pode sozinho sustentar as despesas domésticas ou quando elas próprias eram obrigadas a prover o sustento (quando viúvas ou separadas). Já o trabalho a domicílio aparece como uma forma de trabalho remunerado que não perturba significativamente as atividades domésticas e é inclusive mais aceito pelos maridos (em geral há conflitos com estes) e permite também um acréscimo na renda familiar para atender a necessidades importantes em diferentes períodos do ciclo de vida familiar (construção da casa própria, despesas com os filhos).
A costura externa permite uma flexibilidade na organização do trabalho, que possibilita à mulher ocupar-se de suas atividades domésticas mas isto de uma maneira especial pois realizar as tarefas aí implicadas significa cumprir suas obrigações de dona-de-casa e, portanto, desempenhar seu papel de mulher. A alocação dos recursos financeiros da família é realizada também segundo as obrigações próprias do marido e aquelas da esposa. O salário da mulher é empregado em itens específicos como a complementação da alimentação diversificando os itens da cesta básica da família. Assim explica-se a ocorrência deste tipo de trabalho industrial a domicílio pela possibilidade de manutenção de, nos termos da A., um padrão ideal de distribuição de tarefas entre homens e mulheres das classes trabalhadoras (respectivamente trabalho remunerado e trabalho doméstico) e as "correções" sistemáticas que sofre diante das necessidades de complementação da renda familiar.
A pesquisa indica, portanto, que a possibilidade de manter a divisão sexual do trabalho torna o trabalho industrial a domicílio receptivo às classes trabalhadoras. Quanto às diferenças entre as identidades de homem e mulher, é sabido que no início do século XIX acentuaram-se as diferenças formais entre os trajes masculino e feminino, este com uma quantidade muito maior de elementos decorativos e submetido a variações sazonais que caracterizam a moda em vestuário, ao contrário do primeiro, experimentando um menor número de variações e menos submetido às mudanças da moda. De uma forma geral considera-se a roupa masculina simples e a feminina complexa. É sabido também que estes dois padrões diferenciados de vestuário estão referidos à construção da identidade masculina e da feminina, em acentuada oposição segundo os papéis atribuídos a cada um no mundo social do trabalho e mundo privado do espaço doméstico. É pouco conhecido, no entanto, o quanto a organização da produção e do trabalho na indústria de confecção - considerando suas três primeiras características apontadas anteriormente - estrutura-se em função da construção da identidade de homem e de mulher.
O vestuário masculino, simples e experimentando poucas variações no padrão, não apresenta dificuldades técnicas de produção e cria uma demanda estável que permite a estandardização dos produtos e os ganhos de escala, suportando os custos de uma estrutura administrativa para controle do trabalho parcelado; o feminino, ao contrário, complexo e extremamente variável no padrão, apresenta muitas dificuldades técnicas de produção e estabelece uma demanda instável que não permite a estandardização dos produtos e os ganhos de escala. A lucratividade na produção de roupas femininas está na flexibilidade da empresa em atender as contínuas modificações na demanda e na aplicação do fator trabalho, eliminando-se despesas com estrutura administrativa.
Quanto à quarta característica da estrutura da indústria de confecção, a divisibilidade das tarefas e o monopólio das atividades de criação, preparação (modelagem e corte) e comercialização dos produtos, destacando-se nesta última o investimento em marketing, sua discussão é um pouco mais desenvolvida no capítulo 3, no qual utiliza-se entrevistas com proprietários de oficinas de confecção para compreender com maior detalhe a organização das empresas. Verifica-se que devem ser flexíveis quanto à produção para responderem de maneira rápida às constantes mudanças na demanda. Estruturam-se como empresas de pequena e médio porte, em geral com uma produção de duas mil a cinco mil peças/mês, através de uma equipe interna de vinte a trinta pessoas, que centraliza as atividades indicadas acima e ao mesmo tempo contratam costureiras externas para a fase de produção, reduzindo os custos de capital fixo e mão-de-obra.
O sucesso dos empreendimentos no setor depende em muito do que poderíamos chamar "capital cultural". A experiência administrativa e a capacidade de gestão financeira são requisitos para a boa condução das empresas mas a inventidade na criação e a sensibilidade para perceber os modelos de maior demanda numa estação (diagnosticar tendências) são exigências que determinam o sucesso ou fracasso de uma tentativa. Entre as empresárias, exclusivamente, constata-se que muitas vezes começaram com um capital muito baixo e sem nenhuma experiência empresarial mas cujo sucesso podemos explicar através do conceito de habitus elaborado por Bordieu pois observa-se que suas relações sociais e seu circuito de estudos e viagens as aproximam do público cuja demanda procuram atender.
O estudo da industrialização pelo sistema fabril da confecção de roupas nos países desenvolvidos mostra todas essas características do setor. A produção de vestuário pelo sistema fabril iniciou-se nos anos de 1880 e já desde meados do século surgiam inovações técnicas no setor, a mais destacada sendo a máquina de costura (primeira versão comercial em 1851), mas são transformações que ou aumentaram a produtividade do trabalho a domicílio ou ocorreram e tiveram aplicação em ramos específicos da indústria de confecção, calçados e roupas masculinas, mercadorias suscetíveis de padronização.
A produção fabril de vestuário feminino iniciou-se durante a Primeira Guerra, intensificando-se durante a década de 20. Transformações nos custos de mão-de-obra são um primeiro fator a considerar (examinando o caso inglês, a diminuição da imigração judia durante a guerra e a regulamentação do trabalho a domicílio através de Trade Boards encareceram o custo desta forma de relação de trabalho). Ao mesmo tempo, os custos com investimento em técnicas de produção haviam diminuído em relação a períodos anteriores com os aperfeiçoamentos das inovações já utilizadas na fabricação de roupas masculinas e então largamente utilizados na confecção de uniformes militares. Mas há também uma transformação no padrão formal do vestuário feminino que possibilitou sua produção em série nas fábricas. Ocorre uma simplificação da roupa de mulher durante a guerra que diminui os problemas técnicos para sua confecção, mudança que se torna padrão para as décadas seguintes e para a qual concorrem transformações em valores sociais (a decadência do princípio aristocrático do conspicuous consumption, nos termos de Lipovetsky).
Embora o sistema fabril tenha se introduzido em toda a indústria de confecção, a escala dos empreendimentos permaneceu pequena em relação a outras indústrias e o trabalho a domicílio continuou empregado de forma constante. Uma nova expansão do sistema fabril na confecção de vestuário ocorre com a eclosão da Segunda Guerra. Surgiram grandes fábricas de roupas femininas, de produção em larga escala, mas elas só se mantiveram no pós-guerra para aqueles produtos suscetíveis de padronização (jeans e roupas íntimas) permanecendo seu grau de desenvolvimento técnico comparativamente menor do que de outras indústrias leves como, por exemplo, a eletrônica.
O mesmo tipo de desenvolvimento experimentou a indústria de confecção brasileira. Quanto aos setores de maior produção, em 1920 a indústria de calçados e chapéus ocupava mais da metade da mão-de-obra empregada no setor de confecção; na fabricação de roupas predominavam as roupas brancas ("internas"). Quanto as roupas "exteriores", as femininas e infantis eram tão inexpressivas que estavam incluídas na categoria "roupas para homens". Esta situação indica que boa parte da demanda era atendida pelo produtor independente, o alfaiate e a costureira.
A partir da década de 1960 a roupa feminina tornou-se o produto de maior importância, superando a produção de outros setores. Desde então verifica-se um crescimento significativo das empresas de médio e grande porte e a heterogeneidade estrutural verificada para os outros países observa-se também no Brasil pois nas décadas de 1970/80 as pequenas empresas constituíam 88,1% dos estabelecimentos e ocupavam 32,1% da mão-de-obra. A utilização de trabalhadores a domicílio continuou importante, pois na indústria de confecção constituem a maior parte do trabalho informal, para cuja relação com o trabalho formal alguns estudos apontam os seguintes índices: em 1970, relação 1:3; em 1980, relação 1:1,54.
Texto publicado por Adilson José de Almeida em Anais do Museu Paulista; história e cultura material. São Paulo, v.3, p.276-81, 1995