Revistas de Moda: Masculinidade e a Ambiguidade nos Anos 90

Artigo

Patrícia Sant'anna

Resumo:

Este artigo reflete sobre a importância da questão da masculinidade na atualidade e a importante visibilidade que a moda dá ao repensar desta condição. Ao longo de minha pesquisa percebi que esta questão se faz presente tanto dentro das revistas de moda, como também nas pesquisas antropológicas, coloquei-as em diálogo para compreender melhor o discurso das revistas de moda sobre a masculinidade na contemporaneidade.

Para tanto, construi o texto demonstrando que o discurso sobre a diferença é um recorte possível de análise e a esse somo uma rápida abordagem de uma perspectiva histórica. Procuro perceber como a questão da masculinidade é abordada antropologicamente por diversos autores e como este tema adentrou em meu estudo. Demonstro, então, como a questão me instigou e me incomodou durante o percurso da investigação, como a discussão da masculinidade e a ambiguidade são elementos que têm destaque dentro das revistas de moda. Com este artigo desejo colocar as reflexões que fiz sobre a importância da moda como locus de uma exemplaridade das questões sócio-culturais de nossa atualidade. Unitermos: Revistas de moda - Ambiguidade sexual - Gênero - Antropologia Urbana.

Sobre a categoria de gênero

A perspectiva de gênero é um constructo abstrato de classificação que emerge da empiria, no entanto, não é presa e dependente da diferenciação sexual biológica. Esta última é um dado de referência e não um dado definidor do estudo. A diferenciação entre os sexos extrapola para a ordem simbólica (Heilborn, 1990) construindo significados para as diferenças corporais (Scott, 1994). Assim, gênero, se refere a uma construção social do sexo (Heilborn, 1994). O papel da antropologia é analisar os papéis que as pessoas envergam na vida social e tentar descontruí-los, para melhor compreender os significados que as diversas construções de gênero constituem:

"... há machos e fêmeas na espécie humana, mas a qualidade de ser homem e ser mulher é condição realizada pela cultura." (Heilborn, 1994, p. 5)

Com esta concepção, distanciamos o conceitos sobre papéis sexuais ligados a indicadores anatômicos e valorizamos a elaboração cultural, ou seja, gênero deve à noção de arbitrariedade que a cultura carrega em si. Com isso, a categoria de análise é relacional onde: (a) em um primeiro momento assinala a descontinuidade empírica entre dois corpos (Strathern, 1988) que; (b) são pontos de referência para a classificação social, onde se constituirá e transcenderá a diferença empírica dos corpos, tornando-se uma diferenciação social, um instrumento de análise da sociedade (Scott, 1994). Instrumento este que (c) constitui uma categoria universal dependente das atualizações concretas dos sujeitos para se atualizar e operacionalizar-se (Heilborn, 1993).

Portanto, o dado relacional da categoria de gênero, sob a perspectiva antropológica, é o que gera a hierarquização e a assimetria constituinte desse instrumental de análise . Desta maneira gênero, é uma categoria que manipula elementos de distinção entre as construções sociais a respeito da diferenciação sexual, dos elementos contrastivos, ao mesmo tempo que estes são complementares e hierárquicos . "As propriedades simbólicas particulares à constituição do masculino e do feminino são fenômenos da relação hierárquica entre eles" (Heilborn, 1994, p.7).

A diferença é desta maneira inscrita no discursivo. Compreendendo discursivo como todos os tipos de linguagens pelos quais os humanos dialogam em sociedade, portanto, uma noção bem ampla (Scott, 1994). Cada vez que pensamos gênero em nossa sociedade, repensamos os significados históricos e políticos que damos ao discurso feito a respeito de como percebemos e vivenciamos a diferença sexual. E é a partir desta ótica que quero analisar o gênero masculino. Os motivos de se repensar o masculino hoje O movimento feminista e o movimento homossexual iniciados na década de setenta e fortalecidos na década seguinte colocam em xeque o modelo masculino vigente.

O movimento feminista muda a ótica e a prática, questionando símbolos e significados arraigados e internalizados sobre a mulher e tudo o que dela é consequência (maternidade, corpo, direitos, posicionamento social e político, etc.) reivindicando um olhar que parte da própria mulher para se autodefinir. E o movimento homossexual reivindica sua especificidade como posicionamento e práticas sexuais como não-patológico. Ambos movimentos questionaram suas posições na sociedade e reivindicaram visibilidade para suas causas. Este questionamento fez com que o modelo de masculinidade tradicional e das relações patriarcais fossem colocadas consequentemente em discussão. A partir destes movimentos o modelo tradicional de homem, e seu estatuto de universal e genérico, é cada vez mais questionado.

A mudança da representação se faz necessária. Este repensar o masculino, no entanto, não muda o sistema de representação de gênero, o significado primeiro não modifica-se, o que ocorre é uma rearticulação das classificações à respeito da construção dos gêneros. Portanto, enquanto, mulheres e homossexuais fizeram uma revolução, ou seja, uma mudança dos sentidos dos conceitos, o homem heterossexual se encontrou compulsoriamente com um problema: um modelo de posicionamento que não mais condizia. Portanto, ele deve e tem que se repensar. Deslocamentos diferentes, portanto: mulheres e homossexuais revolucionaram, homens heterossexuais repensam.

Repensando as masculinidades

O homem hoje tem uma trajetória difícil, pois, vivenciar coisas do universo feminino sem deixar de se reconhecer ser masculino, não é um movimento fácil. Antes pensemos no projeto da modernidade: razão + utilidade + domínio. O indivíduo que aí nasce é o burguês, que possui os papéis de gênero muito bem definidos: homem conquistador/provedor (esfera pública) e mulher que cuida da casa (esfera privada), no século XIX a modernidade começa a sofrer algumas consequências de suas diretrizes e a racionalidade, a consciência e a própria noção de matéria é colocada em dúvida.

Ao longo do século XX a ciência e as ideologias foram todas colocadas constantemente a prova e hoje, pós-movimento feminista, é praticamente impossível se pensar em um modelo de masculino, pois, esta síntese não dá para ser resgatada, já que o sentido totalizador do mundo é algo superado, é algo não vigente e condizente com as vivências das pessoas. O mundo hoje vive (e reivindica) uma existência do plural, do indivíduo múltiplo vagando e manipulando uma teia de identidades. "A emancipação do indivíduo na ordem político-social (...) emparelharia-se com a afirmação confiante e orgulhosa da individualidade nos domínios da ética e da estética" (Nolasco, 1995, p. 15) O indivíduo busca uma singularidade como dado de uma diferenciação dentro de um mundo pluralizado, assim o individualismo gera diferentes definições de homem/mulher. Porém, fugir da anatomia não é possível: "...ela é pelo menos um ponto de referência e confluência das possibilidades de reconhecimento das múltiplas organizações subjetivas." (Nolasco, 1995, p. 17) .

Portanto, masculino e feminino são relidos, mas não são valores abandonados, mas atualizados e confirmados de outra maneira. De qual maneira? Mais plural, variada e livre, na escolha e manipulação das categorias de gênero.Toda a discussão teórica que o movimento feminista proporcionou (e ainda proporciona) é um importante referente nos estudos teóricos, não é, no entanto, a base para se repensar na condição masculina. Repensar o masculino é perceber como é moldado este olhar que o vislumbra: ele só percebe aquilo para o qual é treinado e quer ver, portanto, este masculino do campo da representação (a visibilidade do empírico).

A cultura (a sociedade, o grupo, o meio onde vive) determina símbolos que o indivíduo inscreve no corpo (símbolos de homens e mulheres), e é a partir daqui que a anatomia (e tudo o que ela poderia determinar) não pode mais se sustentar. Fica-nos claro que a polarização existe e sua manipulação é dado praticamente individual: "É preferível uma liberdade feita de indeterminação a todas as certezas que subordinam à sua volta. Assim, o homem sem qualidades se afirma como um homem do possível e da experimentação, que não se alarma ao ver sua identidade passar por contínuos remanejos" (Nolasco, 1995, p. 29) A presença da 'questão masculina' em pesquisas antropológicas "... o ideal de beleza não tem o mesmo vigor para os dois sexos..." Gilles Lipovetsky Em um ensaio muito divertido Da Matta (Caldas [org.],1997) reflete sobre a identidade masculina; o autor retoma a sua adolescência em uma cidade do interior de Minas Gerais, analisando o como se constituía um modelo de masculinidade através de uma brincadeira intitulada "Tem pente aí?" .

O foco de sua análise é a construção do masculino na adolescência: momento em que a aparência física é alvo de preocupação, a corporalidade começa a ser (re)treinada para que a identificação de gênero tome outros significados - a diferenciação deve ser clara, pois estão a caminho de serem adultos. A masculinidade era constituída em oposição ao homossexualismo passivo e a impotência (dados que estão na fronteira com o feminino). Rituais gestuais, a brincadeira, por exemplo, destinavam-se, sobretudo, a moldar a masculinidade e separar os 'normais' dos 'fronteiriços'. Ser homem transborda simplesmente ter um corpo macho, é antes de tudo, constituir esta masculinidade simbolicamente: "Um dos preços da masculinidade, portanto, era uma eterna vigilância das emoções, dos gestos e do próprio corpo." Roberto Da Matta (Caldas [org.], 1997, p. 37).

Assim, mais do que marginais, o homossexualismo e/ou o celibato eram vistos como uma 'traição ao gênero' , ou seja, um vivenciar a sexualidade que não fosse com mulheres, mas como mulheres. Brincar a respeito das nádegas coloca o garoto numa situação embaraçosa, pois, se o falo é o sinal que ele carrega de masculino, as nádegas representam o outro lado da moeda: a ambiguidade, a angústia, o perigo. Porque o problema não é o ato sexual em si, mas quem é o ativo da relação . As mulheres que são a passivas, portanto englobadas (comidas) pelos homens. A possibilidade disto acontecer com um homem, ser englobado, inferiorizando-o na hierarquia dos gêneros é que é visto com angústia e perigo . Já a impotência, antes colocada, não entra em um conflito com o gênero, mas sim com o (com)provar que grau de masculinidade se têm. Só uma mulher dá a comprovação do quanto se é homem, pois é o ato sexual que 'atesta' sobre a masculinidade, principalmente o discurso que discorre sobre o ato. Assim, o masculino se comprova, nesta análise, como relacional e complementar ao feminino.

Pensando agora sobre as consequências da Revolução Sexual. A 'questão masculina' se faz presente em estudos antropológicos que abordam temas relacionados a nossa sociedade, sobretudo, em contextos urbanos. Por exemplo, na pesquisa de Monteiro (1997) sobre a revista EleEla o autor verificou que nos primeiros anos da publicação, de 1969 à 1972, houve a tentativa de ser um veículo para o casal, ou seja, sua proposta era pensada possuindo como base uma nova idéia sobre os relacionamentos entre os sexos, um novo casal, que pressupunha novos valores para homens e mulheres. O público alvo, depois se descobriu, não existia. A revista então transforma-se em uma publicação dedicada ao público masculino. Algo similar ocorreu no princípio dos anos noventa com a revista Sui Generis .

A proposta desta publicação não é ser uma revista para o casal, como a anterior, mas para homens e mulheres, homo e heterossexuais . Apesar de parecer muito atual com relação aos debates que hoje se travam, assim como a EleEla nos anos setenta, a Sui Generis também não conseguiu achar o seu público. Assumindo como público os homossexuais de ambos os sexos. Percebe-se então que uma possível androginia que talvez fosse sugerida para esta década, não é a prática. Masculino e feminino são relidos, mas não são valores abandonados, mas confirmados de outra maneira já que os significados estão se transformando. Sendo o contexto urbano um locus onde a visualidade reina absoluta sobre as outras formas de percepção, coloquemos então este dado como foco.

A mudança visual (e também comportamental) do homem não é apenas um fenômeno de passarela, um pequeno show do universo da moda, não! A passarela demonstra de maneira exemplar as diversas faces e tentativas do homem contemporâneo (Caldas, 1997). Os homens, a partir da virada da década passada, começam a manipular muito mais elementos para sua constituição visual, passam ao mesmo tempo por uma revisão/renovação pautados nos já citados movimentos feminista e homossexual. Porém, como se demonstra realmente esta mudança? Isto é, se as imagens masculinas estão diferentes, em quê mudaram? Baseada em algumas leituras e em minha pesquisa procurarei elucidar esta questão.

Existem quatro elementos que demarcam a franca transformação do modelo masculino: a) Padrão de beleza - Ele se torna mais magro, jovem e ambíguo. No entanto, não suplanta outros padrões. O padrão, na verdade, é plural, isto é, são padrões, onde o mais vigente é o anteriormente citado . b) Roupas e acessórios - O homem passa a ter uma maior quantidade de formas e cores para utilizar, e consequentemente uma maior variabilidade. Tem assim a chance de demarcar visualmente com mais riqueza de detalhes, aumentando o jogo de permutabilidade . c) Ludicidade - Retorno a um elemento abandonado desde o século XIX do guarda-roupa masculino (Lipovetsky, 1989). O jogo sem mira em resultados, mas pelo puro divertimento.

A criatividade volta com a maior variabilidade de formas, cores e acessórios. O homem, se quiser, pode ser muito divertido no vestir-se, sem ser caricato . d) Masculinidades - O homem não necessita seguir apenas um modelo. Pode passear por várias propostas. Tornando o homem da década de noventa um ser plural . Estes quatro elementos, como podemos notar, não são independentes, são mistos e definem de forma diferente o que um homem vai vestir. Cada elemento possui pesos variáveis a cada incursão ao guarda-roupa masculino. Por exemplo: o terno. O terno é uma vestimenta que necessita ser repensada pelos criadores, pois, é um conjunto que é basicamente identificado como roupa de trabalho. Atualmente o próprio lugar de trabalho e a noção do que seja trabalho está sendo modificada. Assim, a roupa a ser usada também passa por um questionamento. O terno não é mais só roupa de trabalho . Este exemplo, vem colocar a luz, mais uma possibilidade de modelo masculino: os homens que nasceram nos anos 70, que cresceram nos anos 80 e que hoje chegam ao mercado de trabalho usando bonés, tênis e bermudas. Esses jovens homens possuem suas referências nitidamente retiradas de adolescentes: brechós, roupas esportivas (streetwear e surfwear) e videoclipes .

É certo, que os que podem usar este tipo de roupa durante toda a semana, optaram por profissões que lhes dão esta liberdade, mas a possibilidade de um consultor de administração de empresas ou informática que passa os seus préstimos via Internet, estar de boné, tênis e camiseta na frente do terminal em que conversa com seu cliente, também é possível. O que isto significa? Significa que pós-feminismo, pós-movimento homossexual e com as novas tecnologias surgindo e modificando o cotidiano, o homem tem mais possibilidades, mais variações (e porque não liberdades) possíveis de vivenciar a sua masculinidade, pois as oportunidades e as questões que encara hoje são também múltiplas. Sexualidade e moda A sexualidade se tornou um importante assunto jornalístico e publicitário nos anos noventa. Em grande parte devido ao surgimento da AIDS na década de oitenta como doença fatal, sem cura e diretamente ligada ao sexo , tornando este último, assunto popular.

O que percebo, é que o processo de discussões sobre sexo e sexualidade que antes eram abordagens quase que exclusivas de revistas femininas tornou-se comum, mesmo no horário nobre na televisão. Isto tomou tal proporção que astros como Madonna apostam em uma jogada de marketing, expondo sua sexualidade para quem quisesse , ou seja, a super expondo do assunto sexo. Para a realização com sucesso desta idéia e que ajudou-a na constituição da imagem que se propôs frente ao público, foi a de aparecer em seus shows e vídeo-clipes vestida com modelos concebidos especialmente para ela pelo instituidor do unissex (nos anos oitenta) Jean-Paul Gaultier. Ótima empreitada que retornou em lucro para ambos: Madonna se tornou mito, talvez o último do século e Jean-Paul Gaultier definiu a moda dos anos noventa .

Juntos instituíram que se a sexualidade não estiver a flor da pele, estará, ao menos, na superfície da roupa. Esta rápida incursão que fiz demonstra como o assunto se tornou banal nesta década é apenas para revelar as alusões às diversas variantes de sexualidade que deixaram de ser dados constrangedores para se tornarem elementos de sedução do leitor. Sendo desta forma exaustivamente exploradas pela mídia. Como pertence à lógica da moda, a mídia também se viu obrigada a criar o novo sobre a sexualidade.Em um dado momento de minha pesquisa, a atenção foi presa a um dos últimos elementos de sedução, utilizados durante esta segunda metade de nossa década: a sexualização do andrógino. Esta sexualização do dúbio acaba por constituir os adolescentes em fonte de inspiração para a maioria das campanhas de moda e publicitárias sobretudo.

O garoto e a garota com aspecto de adolescente se tornam também fonte de desejo. Que as modelos utilizadas em desfiles e fotografias tinham 18, 15, e mesmo 13 anos já era fato desde a década de oitenta, mas o aspecto que estas garotas exploravam era sempre de uma mulher. Elas eram maquiadas e vestidas para aparentarem mais de 20 anos. Portanto, o desejo, a libido que articulavam era de um desejo forjado para mulheres, ou seja, para pessoas do sexo feminino, sexualmente maduras e definidas heterossexualmente. O tipo masculino também, pois os modelos raramente tinham menos de 20 anos, aliás a maioria aparentava estar por volta dos 30 anos, pois, este era o padrão articulado para homens, mais uma vez o padrão definia pessoas sexualmente maduras e definidas. A partir desse dois tipos exemplares de padrão, vigentes até os anos 80, chego a conclusão de que eles - os padrões - , até então, eram referentes a definições claras do que era ser feminino e do que era ser masculino. A linha divisória entre estes dois pólos era clara.

Já nos anos 90, as revistas me mostraram isso, existe uma diferença imensa: a aparência de um adolescente se tornou desejável justamente porque ele representa a personificação da indefinição sexual. A imaturidade sexual dá vazão à ambiguidade que é um dos mais importantes - ou pelo menos destacado - desejos manipulados, na década de noventa, pela mídia e consumido pelo leitor. Se até os anos 80 a fronteira era clara, hoje ela é tênue. Continua a existir, mas é difusa, e é justamente nesta difusão que ela é explorada simbolicamente pela moda. Ambiguidade Sexualidade dúbia. Através de pequenos 'nadas' a diferença é sempre tratada. A oposição dual se mantém, já que é justamente sobre ela que se estabelece o foco da discussão.

O sistema da moda necessita do jogo das diferenças. Pode, portanto, diminuí-las, mas não abolí-las. Existem peças/elementos que são exclusivos do feminino e que o uso para o masculino é sempre proibido: "O masculino está condenado a desempenhar indefinidamente o masculino" (Lipovetsky, 1989, p. 133). Assim, percebo que mesmo usando elementos da roupa masculina, as mulheres não deixam de ter algo feminino, algo que as identifiquem como tal; as roupas masculinas aumentam o leque de escolhas femininas, sem, no entanto, substituir as peças ditas femininas - saias, vestidos, bustiês....

Já esta pequena desobediência é problemática para os homens, pois, além da utilização de elementos femininos ter começado há pouco tempo, se comparada às incursões que as mulheres já faziam ao armário masculino, os elementos femininos para homens são ainda considerados transgressões visuais agressivas. A ilusão do unissex é construída com base nesta idéia de sexualidade dúbia do ocidental moderno. Baseado em uma individualização exacerbada, inclusive da noção de ser feminino e/ou masculino, onde o que o indivíduo pensa e faz com e sobre o seu corpo e imagem é uma decisão exclusivamente sua, a moda e suas propostas são novidades que proporcionam ao 'eu' uma pequena aventura.

Agora o que não se deve deixar de lado é que este neonarcisismo possui um detalhe constitutivo que é o que torna o unissex uma ilusão: o caráter diferenciado de se abordar corpo e imagem que existe entre homens e mulheres. O homem concebe o corpo e sua imagem de forma sintética: " O neonarcisismo masculino investe principalmente no corpo como realidade indiferençada, imagem global a ser mantida em boa saúde e em boa forma; pouco interesse pelo detalhe..."(Lipovetsky, 1989, p. 136) Sua imagem está ligada a uma manutenção da juventude, do dinamismo, da beleza de todo o seu corpo e não de partes.

Já a mulher se concebe de maneira fragmentada, percebe-se aos pedaços: "Investe-se em todas as regiões do corpo; o narcisismo analítico detalha o rosto e o corpo em elementos distintos, cada um deles afetado por um valor mais ou menos positivo: nariz, olhos, lábios, pele, ombros, seios, quadris, nádegas, pernas; são objetos de uma auto-apreciação, de uma autovigilância que acarretam 'práticas de si' específicas destinadas a valorizar e a corrigir tal ou tal parte de seu físico" (Lipovetsky, 1989, p. 137) Os padrões de beleza femininos possuem valores de observação escrupulosos, que desencadeiam um inevitável processo de comparação com as outras mulheres.

Tornando a concepção de beleza feminina, sobre seu corpo algo extremamente analítico. A busca da androginia, evidentemente, minimiza a diferença, porém, não a anula. O que acaba por ocorrer são que as mulheres possuem uma gama de escolhas radicalmente maior que a dos homens e estes aumentam timidamente a ludicidade de suas composições visuais. A homogeneização entre os signos masculinos e femininos, portanto, só existe em um olhar desatento, pois, a diferença existe.

Existem, 'pequenos nadas' que nos fornecem a diferença. "Tal é o espantoso destino da igualdade, que nos consagra não à similitude, mas à indeterminação, à justaposição íntima dos contrários, ao questionamento indeterminável da identidade sexual" (Lipovetsky, 1989, p. 140) Percebo o porquê da necessidade da publicidade de usar adolescentes para veicular um padrão andrógino de beleza que rege os anos 90: eles são mais francamente indefinidos e ambíguos. A indeterminação de suas identidades sexuais vem de encontro com o processo da moda: a diminuição dos extremos não tem como interesse a unificação das aparências, mas sim a criação de um leque abrangente de escolhas.

Sexualidade e mídia Para colocar de maneira mais clara começarei analisando um dado secundário de minha pesquisa, porém, que ilustra muito bem a atual situação: o filme Kids. De início, Kids surpreendeu porque teve um êxito de crítica e público que não se esperava . A história retrata como são os adolescentes - no caso pertencentes a classe média baixa - dos grandes centros urbanos - Manhattan, Nova Iorque. É notória a falta de adultos no filme, eles quase não aparecem e quando o fazem, é de forma rápida e, nestas poucas cenas, já é clara a latente sexualização que os adolescentes fazem do mundo ao redor deles . O assunto sexo, com relação aos adolescentes, é tratado, ainda que de forma problemática, de maneira direta e sem muitos psicologismos, dando voz ao próprio adolescente que coloca claramente várias variáveis na trajetória do filme .

Este mundo adolescente seduz o adulto, pelo menos o aspecto visual do primeiro anda fascinando o segundo. Isto se confirma quando a atriz protagonista, se torna na mesma estação na qual o filme foi lançado, a modelo da marca que mais estava sendo copiada naquele momento: a Miu-miu . Uma adolescente que no único filme em que havia atuado faz uma personagem que passa quase o tempo inteiro da projeção drogada, vagando a procura do único garoto com o qual manteve relações sexuais e lhe transmitiu AIDS. Tudo isso, no entanto, não 'queima' a imagem desta atriz, ao contrário, ela se torna mais desejável, mais vendável. Porque as pessoas que vão consumir Miu-miu se sentem ou atraídas ou identificadas pelo visual que ela ostenta durante suas andanças pelos clubs, festas e ruas de Manhattan, enquanto procura o garoto que a infectou .

Seu papel representa muitas coisas, mas entre elas, uma das mais fortes facetas que nos é mostrada, e a mais interessante para a minha discussão, é a constante da imaturidade sexual, a personagem protagonista, apesar de vivenciar tudo o que se passa na tela, continua possuindo menos de 15 anos de idade. O imaginário da ambiguidade foi notado no começo dos anos 90 pela fotógrafa Bettina Rheims. Ex-modelo que se lança como fotógrafa e acerta em uma, e talvez a mais forte, tendência desta década: a androginia. Bettina faz uma exposição nos Estados Unidos em 1989 intitulada: "Modern Lovers" onde retrata muito bem a androginia de jovens comuns (até então nenhum deles era modelo profissional) que vagavam pelas ruas dos grandes centros de moda (Nova Iorque, Paris e Londres). Ela fotografa um padrão de elegância até então restrito a estes jovens . Colocando esta exposição como estopim, analiso, agora a campanha da marca Calvin Klein. Este é um caso exemplar, diretamente ligado ao objeto de minha pesquisa.

A Calvin Klein institui Kate Moss como modelo carro-chefe de suas coleções, e modelo exclusiva para campanha em três, dos seus cinco perfumes no mercado. Ela é a modelo que lançou a imagem publicitária de One, um perfume que aposta não só no seu ar adolescente, mas na ambiguidade comum aos 'quase-adultos', ambiguidade esta que Kate Moss tão bem representa: quase um garoto, quase uma mulher, imatura (e porque não indecisa?) sexualmente sobre todos os aspectos . No Brasil, posso citar, como exemplo, as propagandas da marca jovem Triton. Esta etiqueta explorou não só o ar infantil e dúbio do adolescente, mas também joga com o ar 'junkie' para adolescentes. Suas modelos parecem sempre estar saindo de uma 'balada' e apresentam um aspecto de cansaço, fim de noite... rostos magros, pálidos, maquiagem que simula um rosto suado, olhos quase borrados, cabelos desarrumados, poses sem glamour, soltas demais, 'cansadas'... O aspecto delas explora mais a atitude, o estilo, do que uma busca à beleza, ou ao glamour. A impressão que se tem é que são fotos 'flagrante' , que não existe muito truque para a sua produção . Não só a Triton explora este tipo de olhar publicitário sobre o adolescente, mas ela é o caso exemplar, pois foi a primeira no Brasil a sintonizar com a vanguarda mundial e apostar neste tipo de linguagem publicitária dentro das revistas de moda no país .

O importante é notar que estas imagens fazem parte da mesma tendência de fotografia de moda que circula nos principais pontos de produção de moda internacional e que, no entanto, são muito bem recebidas e consumidas pelos leitores das revistas nacionais de moda. São estes textos visuais estilizados, os responsáveis pela colocação no mundo, destas propostas imagéticas e novos padrões de elegância que informam o leitor-consumidor da revista de moda. O divertido é que a idéia de um fim-de-século sem esperanças não surge apenas na segunda metade dos anos 90. Ela não é inédita, os estilistas japoneses já haviam vislumbrado isto nos anos 80. Esta proposta retorna agora com força e acredito que eles - os estilistas japoneses - não imaginavam que seriam quase-crianças que envergariam suas idéias... e mais, misturando-as a este pensamento de que existe um ar dúbio que circunda sua sexualidade. O que estes adolescentes (tanto os que estão nos filmes que cito, quanto os que são parte das campanhas publicitárias, bem como os adolescentes reais que inspiram todo este movimento da moda) fazem não é só resgate da proposta dos estilistas japoneses, mas também a mistura das idéias já 'faladas' com indumentária .

Não só mistura, mas procura. Procura por um caminho para a virada do século "... o que usar agora que tudo já foi usado?" (busca da diferenciação); "Será que tudo já foi dito e pensado e não sobrou nada para mim?" (busca da originalidade, da ostentação do que lhe é próprio). Nosso grupo nativo já pensou nas definições sexuais, nos padrões de idade, nas identidades e, no entanto, como bom adolescente, ele não se sente encaixar em nenhuma das categorias postas e principia então um jogo lúdico, onde ele - o adolescente - brinca com as propostas já colocadas "... pego tudo o que já criaram e crio mais, crio outro, tenho informação suficiente para produzir mais informação!", isto é utilização de todo o dicionário de estilos já usados, inventados, misturando-os e recriado-os para a construção de uma nova linguagem, uma linguagem própria. Os adolescentes se tornam influência para os adultos se vestirem e para os criadores. Viram um segmento de consumo forte.

É certo, que a partir dos anos 60 os jovens já não se vestem como seus pais, se vestiam ao estilo mod e a segmentação de idades, pelo menos visualmente, já era nítida. Porém, o que ocorre hoje é que pessoas com mais de 20 anos evocam o ar de adolescentes de 13 anos, manipulam uma libido que é um estilo misto entre "Lolita" e "Christiane F.". Vão as lojas de roupas jovens e consomem o que é feito, num primeiro momento, para o segmento dos adolescentes.

Fazem isso porquê este segmento tem estilo e atitude que agora - parece jogo de palavras mas não o é - amadureceu simbolicamente. O jogo de sedução, dentro do mundo da moda, nesta segunda metade da década, aponta para vários caminhos. A moda coloca elementos que antes 'deveriam' estar escondidos; agora eles surgem a luz e quase tudo pode ser desejável: do mais cotidiano ao mais exótico ou ao mais proibido. E os homens e sua condição mais fluída devem se inserir e rearticular suas possibilidades de estar dentro deste universo cultural . Apontamentos finais Se pensar em gênero é pensar em um discurso sobre a diferença e sobre um contexto histórico que nos coloca (homens e mulheres) em um constante repensar (sobre condições e lugares a ocupar ou assumir), percebo que a antropologia possui excelentes instrumentais para tratar destas questões.

Pensar sobre a diferença é o enfoque central da disciplina. Perceber a linguagem como dado construtivo de uma realidade, e tentar compreender através de uma desconstrução, é movimento importante da pesquisa antropológica. No entanto, o que me faz fascinar, é poder perceber como em nosso cotidiano as linguagens que manipulamos estão todas impregnadas com discursos. E que estes últimos tornam-se importantes pontos de partida para percebemos as diferentes formas de articular as questões presentes. Por exemplo, se notamos e discutimos sobre um momento de repensar do homem, isto não se dá isoladamente, apenas no meio acadêmico, isto se inscreve no corpo, na roupa, nos desejos que este homem que questionamos vivencia. E é justamente este vivenciar e nestas inscrições que buscamos pistas do como compreender melhor estes elementos internalizados de nossa própria sociedade, do nosso próprio grupo nativo.

Os homens mudam suas roupas, seu modo de trabalhar, sua concepção de família, repensam lugares socialmente alternativos, multiplicam suas possibilidades sexuais de manipular e vivenciar o desejo, etc. tudo isto dentro de um contexto histórico de pós-movimento feminista e homossexual. As consequências deste lugar (local e temporal) em que nos encontramos estão sendo solucionadas pelas pessoas que vivem hoje. E é tarefa do antropólogo ficar atento a estas modificações, perceber como elas discorrem em diferentes discursos e principalmente notar o sentido, o significados destas mudanças qualitativas que se dão ao nosso redor. No meu caso, ficar atenta ao discursos das revistas de moda que nos informam, não apenas, sobre roupas, ornamentos e gestuais, mas o que estes elementos significam dentro da fala da moda. Utilizando-me de instrumentais da antropologia, na tentativa de tradução, do que o homem inscreve sobre o corpo à respeito das questões que enfrenta em seu dia-a-dia.

Bibliografia

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Filme citado:

Kids (1996) Miramax Roteiro: Harmony Korine Produção: Cary Woods Direção: Larry Clark

Documentário citado:

O mundo da moda (1994)

BBC London

Roteiro, produção e direção: Marion Hume