Por Uma Identificação das Novas Formas Estéticas: figuras da moda contemporânea

Artigo

Solange Wajnman

Introdução:

O presente artigo é extraído do nosso trabalho de pesquisa "Por Uma Identificação das Novas Formas Estéticas" realizado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo nos anos de 95 à 97, durante a vigência da bolsa Recém Doutor, outorgada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior(CAPES). Ele segue a mesma orientação teórico epistemológicas sobre o objeto contemporâneo estético, exposto em outro artigo. A especificidade deste artigo porém é a natureza dos dados: figuras da moda contemporânea e evidentemente, os resultados.

O Contexto

O abandono das grandes estruturas transcendentes e teleológicas presentes nos grandes meta-relatos da modernidade implicam numa nova linguagem. Ausência de centro, pluralidade de sentidos, fragmentação são algumas das novas estruturas que estão presentes atualmente nos discursos do saber.

A arte e a literatura não escapam desta nova lógica, constituindo toda uma nova gramática. Cultura do ornamento e do signo, pastiche, revivals, ecletismo são alguns destes elementos desta nova gramática.

Neste perspectiva é importante também ressaltar aqui como a própria noção de história e de verdade que acompanha estes novos discursos também se modifica. A simultaneidade e contemporaneidade das mais diversas experiências das sociedades, propagadas pelos novos meios tecnológicos de comunicação, modificam as antigas noções de história e verdade. Não se pode considerar mais caminhos com um sentido orientado (presente em direção ao futuro) e nem numa verdade única. O tempo das experiências pode se sobrepor, assim como são múltiplas as verdades ou visões de mundo na vida social possibilitadas pelas novas tecnologias.

Todas estas modificações no pensamento ético e estético da sociedade são correlatas à estrutura das novas tecnologias. A configuração destas condiciona, molda, ao mesmo tempo que é espelhada e refratada em todo o "esprit du temps" contemporâneo.

A Hipótese

Nosso trabalho de pesquisa utiliza-se do recurso epistemológico formista (Cf. Michel Maffesoli) na colocação da hipótese : dizemos que há uma correlação entre o modelo das novas tecnologias ( relação sujeito-objeto, abstrato-concreto etc) e as manifestações estéticas da arte contemporânea.

Trata-se de propor a seguinte pergunta-hipótese : a linguagem tecnológica, na sua estrutura essencial, não se refletiria nas novas formas estéticas (novo objeto de arte, moda) ? Em que medida isto estaria ocorrendo?

O Material Empírico

Selecionamos praticamente todas as reportagens dos anos de 93/94 (artes plásticas) e 93/94 e início de 95 (moda) publicadas na Folha de São Paulo. Neste artigo reproduzimos somente os títulos de moda.

12/4/93 Grunge : a moda que quase não é moda saiu de Seattle e começou a vestir a garotada de São Paulo 12/4/93 Estilistas olham para as ruas 22/7/93 Sensualidade dá o tom da coleção Chanel 11/10/93 Gaultier se inspira na Africa e na India 12/10/93 Karl Lagerfeld aposta na transparência 15/10/93 Paris vê três desfiles de Lagerfeld para o verão 18/10/93 Transparências dominam desfiles em Paris 27/10/93 Étnicos ganham as ruas e voltam à moda 1/11/93 Estilistas elegem o multiculturalismo 3/11/93 Punk volta como coisa de boutique 2/11/93 Mix de revivals cria samba do crioulo fashion 9/12/93 Estilo "Maloca"chega à São Paulo e embaralha os conceitos de moda 16/12/93 Sobreposição se adapta com leveza ao verão 30/12/93 Moda da rua define comportamento fashion 30/1/93 Realismo faz moda ficar "pé no chão" 8/1/94 Febre do reciclável chega à moda com a marca Xuly.Bet 8/1/94 Outros nomes da moda reciclada na Europa 21/1/94 Oriente e Romantismo dominam coleções 21/1/94 Alta costura se rende à moda do dia à dia 2/4/94 Dolce & Gabanna 10/2/94 Roupas de mendigos inspiram estilistas do novo look urbano 10/3/94 Cardin se prende ao passado histórico 7/3/94 Bjork abre desfile de Jean Paul Gaulthier 7/4/94 Estilo Destroy chega à São Paulo sem dizer seu nome 9/4/94 Byron Lars põe Africa na moda americana 12/5/94 Moda aponta para a volta dos xadrezes 9/6/94 Falsos e sintéticos vencem os naturais 7/11/94 Stephan Elliot faz musical com drag queen 14/9/94 Verão moderno é de Glória e Reinaldo 15/9/94 Concurso Sminorf premia moda em vez de carnaval 12/11/94 Desfile antecipa verão de 96 e lança premonição fashion 13/12/94 John Galliano explica seu retrô-kitsch-glamour 5/1/95 Afinal, o que querem hoje os estilistas? 7/1/95 Gaultier exalta beleza do Rio e do carioca 23/1/95 Nova coleção da Ellus tem inspiraçãp retrô 26/1/95 Aparato da Ellus brilha mais que coleção

O Procedimento

Trabalhamos com praticamente todas as notícias do período, da maneira que elas foram relatadas pelos jornalistas. Os fatos "miúdos", o estudo das pequenas realizações dos artistas e estilistas ainda sem renome são fundamentais para o nosso método. Tal estudo deve mostrar a CONVERGÊNCIA, para utilizar o termo empregado por Maffesoli, destes "anônimos"em direção aos trabalho dos artistas renomados e das instituições.

No entanto, as reportagens que tratavam dos "notáveis", foram, por este mesmo motivo um pouco mais privilegiadas que as primeiras, na etapa de seleção do material. Consultamos até mesmo um material suplementar para auxiliar a análise. Tal prioridade é compatível com o exercício epistemológico formista descrito por Michel Maffesoli. A escolha aponta para um exemplo paroxístico do fenômeno, um instante onde ele é melhor apreendido. Este é, então o caso por exemplo de mostras de arte organizadas por uma instituição ou a carreira de um artista legitimado.

Um Panorama Geral Dos Resultados Obtidos

O estudo da moda apresentou uma série de pontos coincidentes com o estudo das obras de arte. Apresentamos estes pontos que CONVERGEM (segundo o método formista) para o estudo da obra de arte, apresentado em nosso outro artigo.

A Imaterialidade

No contexto das novas tecnologias a imaterialidade é uma característica fundamental. O sujeito não se encontra mais na esfera da percepção empírica. O real é apreendido na sua virtualidade. Assim como no contexto da linguagem tecnológica encontramos analogias com a nova linguagem da moda. A questão que nos nos colocamos diante do material empírico foram as seguintes:

As novas formas plásticas apresentam características de imaterialidade, a transparência a fluidez, o fluxo, a velocidade? Qual o material está sendo utilizado ?

A tendência para imaterialidade se traduz no caso das novas figuras da moda, nas transparências ( a tecidos leves, sedas, voils soltos) brilhos, lurex, strass,espelhos, Os tecidos sintéticos com cores fluorescentes além do nylon e do plástico explicitam esta condição.

Dentro do elenco coletado de reportagens sobre moda do período indicado no procedimento, destacamos as criações de Karl Lagersfield, Reinaldo Lourenço, Glória, Versace, desfile da Phytoervas.

É interessante ainda ressaltar o exemplo paroxístico realizado em janeiro de 95 da Ellus. Esta empresa realizou uma megaprodução para mostrar sua coleção. Houve chuva artificial, passarela reproduzindo o efeito de um espelho d`agua. As jaquetas e as calças dos modelos eram feitos a partir de tecidos que refletiam a luz e brilhavam.

O Hibridismo

No contexto da nova linguagem tecnológica o tempo e o espaço podem ser sobrepostos e combinados com o tempo e o espaço do presente. Pode-se também aproximar do conceito de hibridismo através das combinações, alterações de sentido entre o emissor e o receptor dentro de uma rede hipertextual, do tipo Internet. O esquema aí não seria mais "A" transmite alguma coisa a "B"mas sim "A"modifica uma configuração que é comum a A, B,C, D etc. Trata-se aqui de refletir sobre "operações moleculares de associação e desassociação que realizam a metamorfose perpétua de sentido"(Pierre Levy).

Traduzindo estas características para a linguagem das roupas, trabalhamos a categoria HIBRIDISMO através da operacionalização "Mutabilidade de sentidos/ transmutações" que resultaram nas seguintes questões:

a)-existe justaposição de tempos e espaços? Os tempos e espaços estão fragmentados? Eles são intercambiáveis? Os estilos se justapõem ?

b)-Há transmutação de elementos em outros?

No material coletado pudemos encontrar vários índices que comprovam a tendência ao hibridismo que vínhamos discutindo. Estes hibridismos se referem aos seguintes aspectos: -do feminino e masculino - do campo e cidade -de tempos e espaços Alguns exemplos: Cardin , "estruturas circulares em mangas, babados e detalhes. Looks especiais e o uso geométrico de peças que definiu suas linhas de corte sobretudo na década de 60." Galliano , "retrô-kitsch-glamour Coleção da Ellus, "usamos bastante cores, purpurinas e materiais sintéticos, os clássicos dos anos 70." Estilistas de Milão (95) promovem um clima de moda retrô. Trazem algo como a releitura dos anos 60 e 70. Pantalonas, patschworks, psicodélicos são alguns exemplos.

A Desconstrução

A esfera social regida pela lógica da identidade de classe, econômica, sexual ou política desmorona no mundo pós moderno. Existe pois um processo de desconstrução. Na esfera da linguagem tecnológica encontramos semelhança deste processo.

A decomposição dos objetos, da cor, do espaço e do tempo foi efetuada por vários artistas como impressionistas, neo-impressionistas, Cézanne e sobretudo os cubistas. Depois do cubismo veremos, no curso do século 20, manifestações da arte e da técnica conjugarem essa tendência à decomposição e à fragmentação da imagem. A televisão e o computador utilizam técnicas de numerização pela qual a imagem é fragmentada em milhares de pontos.

No que se refere à linguagem das novas formas da moda pudemos relacionar este processo de decomposição de maneira extremamente ilustrativa.

As coleções dos seguintes estilistas nos chamaram atenção pois apresentavam esta tendência para a desconstrução: Lagerfeld, estilistas belgas Martim Magela e Ann Demerlemester, Rei Kawakabo, Agnés B., Perry Ellis, Anna Sui, Christian Francis Roth e Jean Paul Gaulthier. As características citadas em seguida mostram o processo de decomposição: -moda das ruas, moda "grunge", "downtown style", estilo "maloca" -"roupas simples, de aparência já usada, ausência de acessórios e de cabelos arrumados" -"roupas rasgadas, desconstruídas, cores sombrias" -"roupas detonadas e confortáveis" -"jeans rasgados, aparência desleixada e todas as sobreposições possíveis."

A Procura de "Topos"

Se a sociedade dissolve formas e medidas fixas e as substitui por elementos intercambiáveis, novas cristalizações momentâneas, mas profundas, são criadas. As noções de identidade, classe social e sexo não permanecem fixas mas retornam em novas composições, essenciais, porém efêmeras.

Como dissemos no plano da linguagem artística verificamos desde período do barroco e do romantismo a deformação, transfiguração, pulverização do objeto. Os achatamentos, a superposição da perspectiva e do espaço tridimensional e a destruição do objeto figurativo são cada vez mais frequentes. Mas, todavia observa-se o desejo de captar a essência do objeto, seu sentido supra-objetivo. Depois de toda decomposição, desestruturação não se estaria em busca de um sentido mais essencial para o objeto? Nas figuras da linguagem da moda poderíamos traduzir este sentimento pelo retorno de um lugar, uma identificação (mas não identidade), pontos de referência.

Nos dados empíricos constatamos a moda dos guetos : punks, skinheads, dos clubbers.

Observamos também uma tendência para trabalhar a moda com componentes da Índia, África, China, Japão, Alasca, México, Bolívia, Inglaterra, países árabes. Alguns estilstas destacam-se nesta procura. Entre eles Jean Paul Gaulthier, Christian Lacroix, Chloe, Romeo Gigli, Domenico Dolce e Steffano Gabanna.

Bibliografia:

Notícias recolhidas na Folha de São Paulo/93 à 95. -Coelho,T. "Moderno,Pós-Moderno", São Paulo, Iluminuras, 1995. -Levy, Pierre, As Tecnologias da Inteligência. O futuro do pensamento na era da informática, Rio de Janeiro, Editora 34, 1993. Maffesoli, M., La connaissance ordinaire, Paris, Ed. PUF, 1981. Eloge de la raison sensible, Paris, Ed. Grasset, 1996. No fundo das aparências, Petrópolis, Ed. Vozes, 1996.