Corpo, moda e masculinidade: mudanças na masculinidade a partir dos anos 60

Artigo

Marko Monteiro

Resumo:

Este trabalho discute mudanças nas representações da masculinidade contemporaneamente. Ou seja, de que formas as representações sobre o masculino em revistas se desenvolveram? Meu argumento é de que ocorre, desde os anos 60, uma crescente erotização do masculino. Assim como uma crescente colonização do masculino com formas de representação tidos como classicamente femininos, como o cuidado com o corpo, a moda e a aparência. A moda portanto é um dos campos onde estas novas representações do masculino e do corpo do homem se desenvolvem com maior intensidade. Desta forma preocupações com a aparência, o cuidado com o corpo e a moda, sempre tidos como exclusivas do feminino e de homens não masculinos, são crescentemente resignificadas como partes integrantes de um "ser homem" contemporâneo. Me baseio para esta discussão nas minhas pesquisas com revistas masculinas contemporâneas, que realizo no âmbito do mestrado em Antropologia da UNICAMP.

Nesta comunicação apresento uma discussão que se desdobra em quase quatro anos e meio de pesquisa, dividida em duas fases distintas mas intimamente relacionadas. Primeiro, uma pesquisa de graduação, com duração de dois anos, a respeito da revista Ele Ela no início dos anos 70. Esta pesquisa resultou em um livro, Tenham Piedade dos Homens! Masculinidades em Mudança (Juiz de Fora: FEME, 2000), publicado este ano, que representa o relatório final com os resultados desta pesquisa. Nesta pesquisa trato das mudanças ocorridas na representação da masculinidade ocorridas a partir de 1969 com o surgimento do feminismo e do movimento gay, temas amplamente debatidos naquela revista, que era a de maior circulação no período analisado (1969-1972).

Segundo, minha atual pesquisa de mestrado (antropologia Social, UNICAMP), em fase de conclusão, a respeito de três revistas masculinas brasileiras contemporâneas (VIP Exame, Sui Generis e Homens), abordando a multiplicidade de propostas editoriais voltadas ao publico masculino atualmente. Nesta pesquisa busco investigar o processo de produção destas revistas e relacionar isto com a representação da masculinidade em suas páginas. Ao relacionar revistas gays e heterossexuais, busco ver a fricção existente entre estes dois campos e avaliar de que forma a pluralização da masculinidade contemporânea coloca em cheque a própria noção unificada de uma "masculinidade".

Em ambas as pesquisas um dos temas mais importantes é a representação do corpo masculino em imagens e sua discussão em textos e matérias. Pois uma das conclusões da pesquisa com a Ele Ela é a de que os homens, anteriormente aos anos 60, raramente apareciam representados em revistas, sob a forma de imagens que exploravam os seus aspectos eróticos e corporais, que explorassem a sua "masculinidade" enquanto atributo a ser apreciado visualmente e a ser debatido, explorado. Aos homens era reservada a posição de sujeito na política, na arte e na História, sendo somente representado enquanto figura pública (artista, presidente, político, papa). A mulher no entanto era utilizada largamente como recurso visual e decorativo. O corpo da mulher aparecia na maioria das vezes extirpado de personalidade, como mero rosto, como beleza a ser apreciada, representando sentimentos abstratos como o amor, a lealdade ou a saudade (ver nota 1).

Com o passar do tempo esta situação muda, a começar com a chamada "Revolução Sexual" dos anos 60. A revista Ele Ela se insere neste contexto de mudança de costumes, já representando em si mesma uma proposta de inovação ao abordar temas voltados ao casal (rompendo com a tradição de revistas deste tipo voltadas exclusivamente ao público feminino). As mudanças trazidas com a Revolução Sexual vieram questionar a posição passiva e submissa da mulher, o casamento, a fidelidade como prerrogativa feminina e trouxe à tona muitas discussões em torno do comportamento sexual de homens e mulheres. Estes deslocamentos têm como ponto culminante a aparição, no final da década de 60, de movimentos contestatórios ainda mais radicais, como o feminismo e o movimento gay.

O feminismo criticava de forma radical a exploração sexual da mulher na mídia e a sua impossibilidade de ocupar posições públicas fora do lar. Estava lançada a crítica fundamental à masculinidade vigente, pois esta crítica levou necessariamente ao uma crítica do machismo enquanto instituição que permeia toda a sociedade, do lar ao trabalho, da política à mídia. A posição de objetos sexuais e meros adereços ao poder masculino foi recusada pelas feministas, que eram criticadas na época por serem masculinizadas e mal amadas, em vários artigos da revista Ele Ela (ver nota 2).

O movimento gay, por sua vez, se configurou num movimento que critica a obrigatoriedade do relacionamento sexual dos homens exclusivamente e obrigatoriamente com mulheres, reivindicando uma pluralidade na sexualidade humana afim de abarcar o amor entre pessoas do mesmo sexo. Isto também representou um duro golpe no machismo e na posição privilegiada do homem. Pois os gays também trouxeram para a arena política da época discussões em torno na identidade masculina como sento machista, reivindicando para si a possibilidade de possuir atributos tidos como exclusivamente femininos sem com isso sofrer discriminação.

Ou seja, amar outro homem, cuidar da aparência, apreciar o corpo masculino, explorar de forma mais aberta os sentimentos, foram toda críticas colocadas pioneiramente pelos gays na época. Muitas destas reivindicações, como por exemplo a de poder expressar sentimentos de forma mais aberta, foram retomadas por homens heterossexuais pró feministas, bastante atuantes atualmente nos EUA, Europa e Austrália.

Desde o final dos anos 60 vemos uma bateria de críticas sistemáticas à tradicional identidade masculina. Já naquele período haviam pressões para que as possibilidades de se vivenciar o masculino fossem ampliadas. Ou seja, reivindicava-se que o homem, antes restrito a uma identidade única de macho patriarcal, pudesse explorar outras formas de viver e de ser homem. Com estes resultados me interessei em desenvolver a minha pesquisa de mestrado a respeito do mercado editorial atual, exatamente para avaliar de que forma estes desenvolvimentos foram incorporados na situação contemporânea.

Ao escolher as revistas para pesquisar, tive preferência por aquelas que de alguma forma inovaram em seu perfil editorial. Por exemplo a VIP Exame, editada pela Abril, representa um modelo diferenciado de revista masculina, por explorar abertamente temas como moda, beleza e saúde do homem, antes tidos como restritos ao público feminino. Portanto uma revista como a VIP, única no mercado editorial brasileiro, representa a meu ver como o mercado mudou diante daqueles processos de questionakmento iniciados nos anos 60.

Ao mesmo tempo a importância das críticas do movimento gay foram centrais no argumento que construí a respeito da revista Ele Ela. Por isso resolvi incorporar na pesquisa atual publicações gays, especificamente a Sui Generis (que muito recentemente deixou de ser editada) e a Homens, ambas editadas pela SG Press, uma micro-editora carioca especializada neste mercado. Ou seja, queria nesta pesquisa manter uma base para a comparação entre os dois tipos de publicação, afim de perceber como o convívio entre propostas tão disparatadas havia colocado em cheque uma noção unívoca de masculinidade ou se, apesar de tudo, haveria ainda assim uma base que unificasse todos os homens.

Nesta pesquisa de mestrado eu pesquisei o processo de produção das revistas, além de analisar exemplares de cada uma das publicações. Isso porque queria ter a possibilidade de investigar como, no momento presente, sujeitos específicos constróem mensagens a respeito da masculinidade e as colocam em circulação nas revistas, que são por sua vez consumidas por uma diversidade incrível de homens, o público leitor.

Este tipo de pesquisa combinada me possibilitou uma série de dados valiosos, como por exemplo perceber que cada repórter que trabalha nas redações da revista tem acesso e incorpora ao seu trabalho uma multiplicidade de referências de outras revistas. Portanto o repórter, no seu processo normal de trabalho, toma conhecimento de uma gama enorme de outras publicações existentes no mercado, brasileiras e estrangeiras, masculinas e femininas. Isto porque, num mercado competitivo e em constante evolução. Não somente o leitor é uma preocupação dos repórteres, mas também os anunciantes (que mantêm boa parte destas revistas) e as outras editoras, que competem entre si por nichos cada vez mais especializados do mercado leitor.

Ou seja, a pluralidade de propostas editoriais disponíveis atualmente não é somente uma consequência dos processos de crítica social engendrados desde os anos 60, mas fazem parte também de um desenvolvimento endógeno ao próprio mercado de revistas, que busca explorar cada vez mais nichos especializados de leitores afim de atrair anunciantes e montar vitrines especializadas para produtos como cosméticos, roupas e viagens.

Este processo de pluralização abriu espaço para todo o tipo de exploração da imagem masculina. Atualmente, o nu masculino e a exploração erótica da imagem do homem é cada vez mais lugar comum. De novo as revistas gays foram pioneiras, colocando o nu masculino nas páginas das suas revistas como elemento editorial fundamental, muito antes de revistas voltadas às mulheres. Depois do sucesso de revistas como a G Magazine, que estampou várias personalidades masculinas brasileiras nuas, uma explosão ocorreu neste mercado, com novas revistas sendo criadas e novos mercados sendo testados. Nas revistas heterossexuais, como a VIP, a imagem da mulher ainda é o chamariz principal, a chamada garota da capa. A revista não mostra muito a imagem do homem em fotos, apesar de o corpo masculino ser presença constante nas páginas da revista. As matérias da VIP sobre moda, saúde e beleza cada vez mais levam ao universo masculino práticas de controle da imagem antes tidas como necessariamente femininas.

Nas paginas da VIP, apesar dos pudores da revista em relação a mostrar o corpo do homem de forma tão explícita como nas revistas gays, cada vez mais o homem é bombardeado com informações sobre seu corpo, com cuidar dele, como usar as roupas certas nas ocasiões certas e como seguir as constantes mudanças da moda. Cada vez mais portanto cuidar da aparência se torna parte integrante de uma masculinidade bem sucedida. Não ser gordo, estar na moda, usar perfumes e cremes e até mesmo depilar se tornam práticas corriqueiras e altamente heterossexuais, coisas que há pouco mais de 30 anos atrás eram tidos como altamente efeminadas e próprias de homossexuais e mulheres.

Ou seja, se na revista gay o tema do corpo masculino, da beleza e do cuidado de si sempre esteve presente, até como prerrogativa deste grupo específico frente a uma masculinidade uniformemente machista, cada vez mais as revistas voltadas a homens heterossexuais incorporam este tipo de mudança nas suas páginas. Cuidar de si, fazer exercícios, usar a roupa certa se tornam cada vez mais necessários para o heterossexual, por fazer parte do jogo da conquista das mulheres.

Ainda assim, apesar de tantos pontos de contato, as revistas gays e heterossexuais buscam o tempo todo se diferenciar. A VIP Exame tenta a todo custo colocar como atividades másculas e próprias do macho o cuidado do corpo e o uso de cremes. Ou seja, o leitor da VIP pode e deve se preocupar com a aparência, mas sempre permanecer macho, usar cremes "de macho" e perfumes "de macho". Isso porque toda a preocupação, segundo a revista, é tornar o homem mais atraente para as mulheres.

Finalizando, podemos pensar que no contexto atual do mercado de revistas, muitas mudanças ocorreram e continuam ocorrendo. Novas possibilidades de vivenciar o seu corpo e sua masculinidade se tornaram acessíveis ao homem, e as críticas do feminismo e do movimento gay tiveram enorme influência na forma como os homens se percebem e consomem produtos como revistas masculinas. Ao mesmo tempo, algumas divisões fundamentais continuam funcionando, especialmente aquelas entre homem e mulher, e entre homossexual e heterossexual. Os universos do homem e da mulher continuam marcadamente separados nas páginas das revistas, assim como os homens heterossexuais continuam a marcar uma diferença fundamental entre eles e os gays, por mais que os produtos, as roupas e as imagens que apareçam nas revistas sejam cada vez mais parecidos.

(1) Ver Monteiro, Marko (2000). Tenham Piedade dos Homens! Masculinidades em Mudança. Juiz de Fora: FEME.

(2) Ver Monteiro, Marko (2000), op. cit., pg. 64.